Para que Filosofia?
por Marilena Chaui
As evidências do
cotidiano
Em nossa vida
cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas,
pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou “que dia é
hoje?”. Dizemos frases como “ele está sonhando ”, ou “ela ficou maluca”.
Fazemos afirmações como “onde há fumaça, há fogo ”, ou “não saia na chuva para
não se resfriar”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, “esta casa
é mais bonita do que a outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”.
Numa disputa, quando os
ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: “Mentiroso! Eu
estava lá e não foi isso o que aconteceu”, e alguém, querendo acalmar a briga,
pode dizer: “Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender”.
Também é comum ouvirmos
os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o
namorado ou a namorada. Frequentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela
diz, como ela age, dizemos que essa pessoa “é legal ”.
Vejamos um pouco mais
de perto o que dizemos em nosso cotidiano.
Quando pergunto “que
horas são?” ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um
relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a
pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode
ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que
virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado
ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta
contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.
Quando digo “ele está
sonhando ”, referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo
impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito
que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o
improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se
relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe
realmente.
Acredito, portanto, que
a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei
diferenciar realidade de ilusão.
A frase “ela ficou
maluca” contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar
razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só
para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito
também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda
que não gostemos das mesmas coisas.
Quando alguém diz “onde
há fumaça, há fogo” ou “não saia na chuva para não se resfriar”, afirma
silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito
entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela,
ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça como efeito, a
chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade é
feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em
relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de
nossa vida.
Quando avaliamos que
uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que
Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem
ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim)
ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim,que a qualidade
e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa vida.
Se, por exemplo,
dissermos que “o sol é maior do que o vemos”, também estamos acreditando que
nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora tais como são em si
mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da distância, de nossas
condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos.
Acreditamos, portanto,
que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e
quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do
sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas
diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando
ou que ficamos malucos.
Na briga, quando alguém
chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como
aconteceram, está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e
mentira. A primeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz
exatamente o contrário, distorcendo a realidade.
No entanto,
consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o
sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o
mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos.
Com isso, acreditamos
que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque somente na mentira
há a decisão de falsear.
Ao diferenciarmos erro
de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a
segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença de que
somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira.
Ao mesmo tempo, porém,
nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de
ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também
acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é
aceitável, não seria uma mentira “no duro”, “pra valer”.
Quando distinguimos
entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras
aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento
da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos,
portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais,
pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal.
Na briga, quando uma
terceira pessoa pede às outras duas para que sejam “objetivas” ou quando
falamos dos namorados como sendo “muito subjetivos”, também estamos cheios de
crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer defender muito
intensamente um ponto de vista, uma preferência, uma opinião, até brigando por
isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém “perde” a
objetividade, ficando “muito subjetivo”.
Com isso, acreditamos
que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são
verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude parcial, pessoal,
ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo). Assim, não só
acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como ainda
acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade,
enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma.
Ao dizermos que alguém
“é legal ” porque tem os mesmos gostos, as mesmas idéias, respeita ou despreza
as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com
os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras
pessoas – família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política – nos faz
semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais, políticos,
religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida.
Achando óbvio que todos
os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais,
religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus semelhantes e
procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram
em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois
regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos por seres
conscientes e dotados de raciocínio.
Como se pode notar,
nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita
de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias.
Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na
verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e
mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a
subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da
moral, da sociedade.
A atitude filosófica
Imaginemos, agora,
alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas
inesperadas. Em vez de “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O
que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhando” ou “ficou maluca”, quisesse
saber: O que é o sonho? A loucura? A razão?
Se essa pessoa fosse
substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde
há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por: O
que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo ”, ou “eles são muito subjetivos”,
por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita
do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo?
Em vez de gritar
“mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro?
O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por
quê?
Se, em vez de falar na
subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O
que são os sentimentos?
Se, em lugar de
discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”,
resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade?
E se, em vez de afirmar
que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gostos, as mesmas
preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que
é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a
vontade? O que é a liberdade?
Alguém que tomasse essa
decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado
a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente,
nossa existência.
Ao tomar essa
distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos
no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e
nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de
atitude filosófica.
Assim, uma primeira
resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de não aceitar
como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os
valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem
antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntaram, certa vez,
a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa
aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”.
retirado do site http://www.cliografia.com/filosofia/
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